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Spengler e Marx: Um Estudo de Patologia Social - Alexander Raven Thomson

  • jeanbecker
  • 16 de fev. de 2024
  • 8 min de leitura

Atualizado: 18 de mar. de 2024



Duas destacadas filosofias da história emergiram do impacto do racionalismo do século XVIII nos séculos seguintes. Uma delas chegou até nós por meio da popularização da dialética hegeliana, na qual Karl Marx substituiu  o conflito de ideias puramente idealista que Hegel postulou em termos gerais por um conceito materialista de luta histórica.


A outra deve sua origem a Goethe e Nietzsche, é mais humanista do que materialista, e nas mãos de Oswald Spengler alcançou o mérito notável aos olhos dos relutantes realistas modernos ao provar uma previsão muito verdadeira das tendências da sociedade contemporânea. À primeira vista, parece que não há duas filosofias mais diametralmente opostas do que o determinismo materialista de Marx e o destino orgânico de Spengler, cada uma procurando explicar o curso da história a partir de pontos de vista conflitantes.


No entanto, longe de haver um conflito essencial entre essas duas filosofias, elas são duas interpretações das mesmas tendências históricas, ambas confirmadas por eventos posteriores à morte de seus protagonistas, e podem ser sintetizadas em uma perspectiva histórica mais ampla que abrange ambas.


Isso pode parecer uma impossibilidade, mesmo porque o marxismo, mais popular, é essencialmente otimista, enquanto o spenglerismo é condenado por seu pessimismo básico. No entanto, mesmo essa contradição é suscetível de síntese, quando percebemos que o marxismo é fundamentalmente uma filosofia de liquidação da hierarquia social do passado em benefício das massas desprivilegiadas, tendo como apoteose final o “definhamento do Estado”, enquanto Spengler é o apóstolo da autoridade e liderança, vendo na desigualdade social a própria base da conquista cultural, e a revolta da “ralé” em busca de gratificação material como o fim até mesmo da Civilização [Zivilisation][1] em que uma Alta Cultura degenera-se.


Olhando para o processo histórico de pontos de vista diametralmente opostos, ambos os homens chegaram à mesma conclusão. Um acolhe com otimismo a destruição do privilégio, a abnegação da liderança, o “definhamento do estado” como processos necessários na “libertação” do proletariado – o nivelamento de toda a sociedade civilizada ao seu potencial mais baixo. O outro vê esse mesmo processo (que ele não nega que esteja ocorrendo) como a destruição da sociedade, a abnegação do espírito humano, a liquidação da civilização para satisfazer a ganância insaciável das classes inferiores da humanidade; estes são incapazes de criar as realizações culturais que eles agora desejam transformar para sua própria gratificação.


Surge a conclusão paradoxal de que Spengler é um socialista muito melhor do que Marx, pois deplora a degradação da sociedade como entidade orgânica, enquanto Marx considera o socialismo, imposto pela ditadura do proletariado, apenas como um meio para um fim, que é o “definhando o estado” para liberar as classes mais baixas da humanidade de qualquer compulsão adicional para servir a fins mais elevados do que sua própria vantagem material. De fato, não seria ir longe demais dizer que Marx não é um verdadeiro socialista, mas é um inimigo da ordem social (que inevitavelmente deve ser hierárquica), na medida em que deseja liquidá-la e, portanto, “libertar” as massas de suas compulsões ao serviço para realizações mais elevadas.


Assim, podemos dizer que tanto Marx como Spengler, como observadores do processo histórico, chegam a conclusões semelhantes: um aceita com prazer como progresso inevitável em direção a felicidade[2] humana, e o outro rejeita com horror como a degradação da humanidade ao nível de bestas, das quais nobres expoentes do espírito humano a levantaram. Isso, no entanto, está longe de ser uma explicação completa do verdadeiro significado do choque dessas duas filosofias.


Por que Spengler capitulou tão mansamente diante de seu adversário mortal? Por que ele aceitou A Decadência do Ocidente tão inevitável quanto a descrição otimista de Marx desse mesmo processo como a estrada para seu paraíso proletário na terra? A resposta é típica dos perigos de uma filosofia excessivamente sistematizada.


Spengler tinha um conceito de sociedade muito mais elevado do que o socialismo autodestrutivo de Marx, quando a reconheceu como um organismo social no qual o indivíduo humano encontrava sua satisfação e sua realização a serviço dos ideais mais elevados de todo o propósito social. No entanto, ele cometeu o erro de conduzir sua analogia orgânica, com a típica meticulosidade teutônica, a ponto de supor que, como a sociedade era orgânica, deveria ser tão suscetível às leis do crescimento, floração e decadência, tal como qualquer outro organismo vegetal enraizado no solo da paisagem terrestre.


Ele não parou para considerar que a natureza é perfeitamente capaz de produzir árvores, como as famosas sequoias gigantes da Califórnia, que podem sobreviver por milhares de anos, pois são praticamente imunes à catástrofe natural. O declínio e a morte dos organismos naturais são necessários para que possam ser substituídos por réplicas de si mesmos, se sua espécie quiser sobreviver às exigências da luta pela existência e às catástrofes naturais, como os incêndios florestais (aos quais as sequoias são praticamente imunes), o que pode varrê-los.


Os organismos sociais, por outro lado, escapam a essa lei férrea da natureza em relação aos organismos individuais, como se mostra claramente até nas formas inferiores das comunidades de insetos, que se perpetuam por “enxameação” sem necessidade de sacrificar a comunidade parental à decadência e à morte.


Como observador do cenário histórico com uma perspectiva muito mais ampla do que Marx, uma vez que cobriu Civilizações de todas as épocas e de todos os continentes, Spengler viu no declínio e queda de Cultura [Kultur] após Cultura no curso da história mundial uma morfologia natural – um inevitável processo de senilidade e morte. Daí sua concordância com Marx de que a Civilização europeia estava em processo de dissolução, por razões tão deterministas e errôneas quanto as do profeta do milênio comunista.


No entanto, como podemos contrariar a interpretação de Spengler dos fatos indubitáveis ​​da história, de que todas as Civilizações do passado de fato deixaram de existir? Se as civilizações não morrem de morte natural, então por que deveriam morrer? Qualquer médico pode responder a essa pergunta. Mesmo que um dos “Matusaléns”[3] de Bernard Shaw nascesse milagrosamente neste planeta, ele ou ela ainda poderia perecer de uma das doenças virulentas da qual a humanidade é herdeira e nunca sobreviver para ser reconhecido como um dos imortais.


Não temos necessidade de aceitar de Spengler o conceito mais do que dúbio da morfologia da civilização, quando há muitas evidências de uma patologia da Civilização. Muitos reformadores apontaram para as doenças da sociedade, embora nem sempre tenham concordado em seus diagnósticos, e podem, em tempos recentes, especialmente, ter argumentado a partir de premissas falsas quanto à anatomia e às funções da ordem social orgânica. Que tais doenças existem, no entanto, é geralmente admitido, e a suposição de que Civilizações passadas sofreram decadência patológica em vez de morfológica é mais do que razoável.


Voltando à síntese de Marx e Spengler, considerada do ponto de vista do conceito superior de ordem social (que é a grande contribuição deste último para o pensamento moderno). Se não admitirmos a Marx que nossa sociedade está em processo de decadência senil, como um destino inevitável de toda vida orgânica, então estaremos em condições de desferir um golpe mortal contra o inimigo marxista.


Se o declínio do Ocidente não é natural, então é o produto da doença. O que o otimista Marx descreve no processo histórico de decadência e morte primeiro do sistema feudal e depois do sistema capitalista de nosso tempo é a doença inerente à ordem social, sua progressiva decadência e desintegração, que esse inimigo da sociedade elevou a uma filosofia de progresso e bem-estar humano. O fato de Marx ter subordinado o espírito humano ao seu ambiente material deve ser evidência suficiente de que sua filosofia é patologicamente decadente, pois é somente pelo triunfo da vontade humana sobre um ambiente adverso que a Civilização foi criada, e a ordem social trazida à vida. Há pouca necessidade de Marx postular o “definhamento do Estado” final (do qual há poucos vestígios na Rússia soviética), pois haveria pouco restante para definhar, a julgar pelo Império Romano em declínio após uma prolongada dieta para as massas de pão e circo.


É claro que a doença da Civilização, que Marx elevou a uma filosofia nobre, é muito anterior ao profeta comunista e derrubou muitas civilizações imponentes antes da nossa. Seu nome é ganância humana individual, e tem atuado em maior ou menor medida ao longo dos tempos . Nem foi Marx o primeiro a levantá-lo sobre o altar para a adulação da humanidade, como o Bezerro de Ouro de Arão. Os grandes liberais do início do século XIX, como Jeremy Bentham[4] e John Bright[5], há muito fizeram dela o Deus dos novos ricos da revolução industrial, antes que Marx os superasse ao entregar a doutrina perniciosa às massas proletárias. O “interesse próprio esclarecido” exercido pelos ricos e poderosos não é menos destrutivo para ordem social e a justiça social do que a ganância das massas reunidas atrás de seus líderes autonomeados para exercer a ditadura do proletariado na liquidação final dos frutos do esforço social em um “band-out” geral.


Pode-se, de fato, dizer que, devido ao instinto social defeituoso do homem, a sociedade, como o próprio homem, começa a morrer assim que nasce, trazendo em si as sementes de sua própria destruição. A ganância humana guerreia contra o serviço social ao longo da história. A época em que o homem estava preparado para construir catedrais para sua fé religiosa em um propósito nobre na terra, enquanto vivia em uma choupana, foi relativamente curta. Depois veio o aristocrata, reivindicando o direito de viver em dissolutas extravagâncias, independentemente de dar ou não em troca os grandes serviços sociais que muitos de sua ordem ainda consideravam um dever.


O declínio posterior trouxe os comerciantes e industriais cuja exploração gananciosa de seus semelhantes inevitavelmente evocou a reação violenta da luta de classes, na qual Marx baseou seu conceito filosófico. Tudo isso são sintomas de decadência e desintegração social, e de modo algum, como o “subversivo” Marx quer nos fazer acreditar, em inversão típica, são sinais do caminho do Nirvana proletário.


Não há, então, esperança para a manutenção da ordem social, que somente por sua comunhão do espírito do homem pode elevar a humanidade acima do nível dos animais? O homem é tão desprovido do instinto social, que mantém as comunidades de insetos em perpetuidade, que cada uma de suas civilizações – até a nossa – deve perecer em meio aos aplausos das massas enlouquecidas pela ganância e seus líderes equivocados, que abusam a nobre descrição socialista para completar a destruição da sociedade?


De forma alguma, se a elite da nossa sociedade europeia pode compreender a mensagem de Spengler sem sucumbir ao seu pessimismo. Uma regeneração da nossa sociedade é eminentemente possível, uma vez diagnosticada a doença de que padece e realizado o tratamento necessário para a sua erradicação.


Todos os meios de propaganda e reeducação devem ser mobilizados para substituir a doutrina venenosa da ganância pelo ideal saudável do serviço. As atividades antissociais em todos os níveis da sociedade devem ser suprimidas, pois não está em jogo menos do que a herança da cultura de todos os tempos, ameaçada pela longa noite de outra “Idade das Trevas”.


Por mais drásticas que sejam essas medidas, elas não escravizarão a humanidade, mas, no sentido mais verdadeiro, libertarão o homem de seus instintos animais mais baixos, para que ele possa mais uma vez conhecer a satisfação e a felicidade de uma grande conquista social – em parceria, e não em competição, com seus semelhantes. Uma sociedade saudável ainda pode ser salva do otimismo de Marx e do pessimismo de Spengler.


FONTE: THOMSON, Alexander Raven, “Spengler and Marx: A Study in Social Pathology”, The European, Vol. 18, agosto de 1954. pp.20-24.

Veja o original aqui


[1]  Nota do Tradutor: iniciais maiúsculas e as palavras “Zivilisation” e “Kultur” foram adicionadas para que o leitor identifique estes como conceitos spenglerianos, e para que não sejam confundidos com o sentido atribuído à estas palavras por outros autores, ou pelo senso comum.

[2] Nota do Tradutor: Do original “human milennium”, expressão britânica que pode ser traduzida como felicidade para todos, em um sentido utópico.

[3] Nota do Tradutor: Referência à peça teatral “De Volta à Matusalém ou Um Pentateuco Metabiológico”, escrito entre o final da Primeira Guerra Mundial e o ano de 1920. Shaw, influenciado pelos horrores da guerra, desconstrói o mito da criação, erodindo o clichê pastoral e bucólico do Jardim do Éden. Através de dois quadros, coloca em cena Adão, Eva, A Serpente e Caim, expondo os conflitos e descobertas supostamente enfrentados pelos primeiros seres humanos.

[4]  Nota do Tradutor: Jeremy Bentham (1748-1832) foi filósofo, jurista e um dos últimos iluministas a propor a construção de um sistema de filosofia moral. Juntamente com John Stuart Mill e James Mill, foi tradicionalmente considerado como o difusor do utilitarismo.

[5] Nota do Tradutor: John Bright (1811-1889) foi um estadista radical e liberal britânico, um dos maiores oradores de sua geração e um promotor de políticas de livre comércio.

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