Cormac McCarthy, filósofo
- jeanbecker
- 24 de fev. de 2024
- 18 min de leitura
Atualizado: 18 de mar.
Uma revisão dos seguintes livros: Philosophical Approaches to Cormac McCarthy: Beyond Reckoning[1], A Bloody and Barbarous God: The Metaphysics of Cormac McCarthy[2] e Cormac McCarthy’s Philosophy[3]

O campo de estudos de Cormac McCarthy há muito tempo preocupou-se com a natureza filosófica da sua ficção, do estudo referencial de Vereen Bell sobre o “niilismo ambíguo” de McCarthy e a defesa espirituosa da ética do autor feita por Edwin Arnold até a influente exposição de Dianne Luce das dimensões gnóstica, platônica e metafísica da sua obra: sem mencionar as leituras crescentes das suas temáticas modernistas, cristãs, existencialistas e anticapitalistas. Enquanto os primeiros estudos tendiam a focar em saber se era possível extrair dos contos sombrios e violentos de McCarthy uma lição moral positiva e catalogar as várias influências filosóficas na sua ficção, compromissos mais recentes, especialmente os três títulos que abordamos aqui, expandem a questão da filosofia do autor. Mais especificamente, os trabalhos de Ty Hawkins, Petra Mundik e Chris Eagle desenvolvem a noção de McCarthy como filósofo, vendo na linguagem e no conteúdo dos seus romances uma posição filosófica sistemática e original. A provocação central destes trabalhos é a afirmação de que o corpus de McCarthy representa um sistema filosófico único por direito próprio e não apenas a expressão deste ou daquele tema filosófico. Dessa forma, eles rompem com grande parte da literatura existente e traçam um curso novo e promissor, se não totalmente realizado, no estudo filosófico de Cormac McCarthy. Por exemplo, a coleção recente de Chris Eagle, Philosophical Approaches to Cormac McCarthy: Beyond Reckoning une ensaios, primariamente por filósofos, que colocam a obra de McCarthy em diálogo com “uma gama muito mais ampla de tópicos filosóficos e [...] interlocutores filosóficos”, de Heráclito, Heidegger e Blanchot aos estudos críticos de animais, Naturphilosophie[6] e eco-fenomenologia (Eagle, 2017, p. 2). O objetivo dessa ampliação é começar a desvendar a “filosofia de McCarthy”, localizada em seu próprio “estilo expressivo de escrita” (Eagle, 2017, loc. cit.). Da mesma forma que Heidegger viu em Hölderlin a “nomeação do Ser” ou Derrida viu em Joyce o jogo da différance, Eagle sugere que os futuros filósofos podem muito bem encontrar em McCarthy não apenas este ou aquele tema filosófico, mas “a execução ou encarnações” de “elementos filosóficos que somente a linguagem literária […] pode […] explicar” (Eagle, 2017, loc. cit.). Há, portanto, a promessa de uma posição filosófica única na ficção de McCarthy, expressa na “dicção notavelmente vasta e ocasionalmente neológica do autor, […] nas suas experiências com sintaxe posicional, e […] nos seus símiles elaboradamente especulativos” (Eagle, 2017, loc. cit.). Embora esta possibilidade permaneça em grande parte especulativa para Eagle, existem dois outros textos recentes que abordam de frente a questão da filosofia de McCarthy.
Em A Bloody and Barbarous God: The Metaphysics of Cormac McCarthy, Petra Mundik desenvolve uma descrição sistemática da filosofia de McCarthy. Seguindo os seus elementos metafísicos, espirituais e teológicos, Mundik afirma que McCarthy é um proponente do que Aldous Huxley chama, seguindo Leibniz, de Filosofia Perene: uma “metafísica que reconhece uma realidade divina substancial para o mundo das coisas, das vidas e das mentes; a psicologia que encontra na alma algo semelhante, ou mesmo idêntico, à realidade divina; [e uma] ética que coloca o fim último do homem no conhecimento da base imanente e transcendente de todo o ser” (2). Para a Filosofia Perene, a própria materialidade é divina, constituindo tanto a Realidade quanto a Verdade, e manifesta-se em tudo, desde a matéria até a consciência. Conhecer a realidade divina é o propósito último da vida humana, na medida em que a própria existência nada mais é do que o reconhecimento da identidade da vida com este princípio divino: a vida é a compreensão de que somos, como todas as coisas, parte da unidade da realidade. Esta ênfase na experiência da Realidade explica, para Mundik, o foco de McCarthy na “experiência mística”, experiências essas que oferecem “um vislumbre da […] ‘Verdade’ última ou Realidade espiritual” (Mundik, 2016, p. 2). Acessar este vislumbre da Realidade e à possibilidade de esperança, revela-se central para o pensamento de McCarthy na análise de Mundik. Além disso, embora reconheça que outras tradições metafísicas ajudam a constituir a Filosofia Perene, incluindo o “sufismo, o hinduísmo ou o neoplatonismo”, Mundik limita a sua análise ao gnosticismo, ao misticismo cristão e ao budismo encontrados nos romances pós-Apalaches[7] (ou seja, de Meridiano de Sangue em diante). Ela impõe estes limites devido aos aspectos práticos do estudo e porque encontra, tal como muitos acadêmicos, uma “importante mudança de interesse” na ficção posterior de McCarthy (Mudink, 2016, p.5). Após a sua viragem ocidental, McCarthy abandona os “temas totalmente obscuros góticos do sul” dos livros dos Apalaches e opta por uma posição cada vez mais “metafisicamente complexa e espiritualmente afirmativa” (Mundik, 2016, loc. cit.).
Com quatorze capítulos, A Bloody and Barbarous God começa com quatro esboços explorando a Filosofia Perene de McCarthy em Meridiano de Sangue, com cada capítulo subsequente movendo-se cronologicamente através dos últimos cinco romances. Ao elucidar a progressão da posição perenialista de McCarthy, Mundik analisa muitos dos personagens e cenas mais comentados do trabalho posterior do autor. Ela inclui um capítulo sobre o Juiz (capítulo 2), o “Kid” (capítulo 3) e uma leitura filosófica de Meridiano de Sangue como um todo (capítulo 4). Ela tem quatro capítulos sobre A Travessia um em cada um dos seus livros (capítulos 6–9) e dois capítulos sobre Cidades da Planície (capítulos 10 e 11). O seu relato é exaustivo e, embora seja completo e bem pesquisado, os leitores podem se sentir impressionados com o nível de detalhe. A chave para a sua leitura é o que ela descreve como a visão “anticosmica” de McCarthy do mundo como “falho” ou “caído” (Mundik, 2016, p.8). Embora esta visão concorde com as leituras gnósticas de longa data de McCarthy, às quais Mundik está em dívida, é esta visão que também, de forma um tanto paradoxal, abre a possibilidade de uma leitura afirmativa da sua filosofia: a noção de realidade como ilusão implica, mesmo que apenas no negativo, a existência de uma Realidade não ilusória. Será a articulação desta Realidade e a possibilidade de esperança nela implicada que não só guiará a leitura de Mundik de Meridiano de Sangue, mas também revelará a força primária do seu relato perenialista.
Dada a insistência da Filosofia Perene na natureza divina, mas em grande parte inacessível, da Realidade, esta filosofia ajuda a explicar a natureza paradoxal da visão de mundo filosófica de McCarthy: a sua ênfase na violência e na brutalidade, por exemplo, uma reflexão sobre a aparência em vez da essência da Realidade. Como Mundik coloca a questão na sua leitura de Meridiano de Sangue, ficamos no final do romance “não [...] com a eterna dança de guerra, violência e morte espiritual do juiz, mas [...] com a figura solitária invencível, trabalhando lentamente em direção a seu objetivo de libertar o elemento divino da prisão da existência manifesta” (Mundik, 2016, p. 99). Seguir esta figura solitária define, em muitos aspectos, o resto do seu volume, Mundik encontra em todos os trabalhos posteriores de McCarthy esta interação metafísica de realidade e aparência. Além disso, é esta interação que, em última análise, abre a possibilidade de esperança no pensamento de McCarthy, esperança esta manifestada explicitamente em A estrada.
Para Mundik, A estrada é a concretização do projeto de McCarthy e o ápice da sua Filosofia Perene. Dado o seu foco na natureza divina da realidade, Mundik destaca os muitos exemplos de associação da criança “com todos os marcadores tradicionais da divindade”, justapostos pela associação do pai com o mundo caído e pré-apocalíptico (Mundik, 2016, p. 310). Embora ela ordene a criança como um “salvador gnóstico”, a promessa de redenção no romance, e na Filosofia Perene de McCarthy, em geral, vem da maneira como ele concebe a destruição do mundo como “uma anulação, uma reversão do erro e um retorno ao estado de totalidade e perfeição anterior à ruptura da criação” (Mundik, 2016, p. 302). No apocalipse de A estrada, vemos a realização da redenção: todas as falsas aparências do mundo foram eliminadas para revelar a possibilidade de algo novo, a possibilidade de um mundo em que a aparência e a realidade não estariam tão em desacordo. Tal possibilidade é, para Mundik, apenas potencial, potencialidade essa manifestada no elemento de “mistério” com que o romance termina. Como diz Mundik: “‘Mistério’ é literal e figurativamente a palavra final de A estrada; as suas várias conotações incorporam todos os temas desenvolvidos ao longo do romance e, de fato, a essência da Filosofia Perene subjacente a todas as obras de Cormac McCarthy” (Mundik, 2016, p. 326). Assim, para Mundik, embora exista um profundo sentimento de esperança no pensamento do autor, trata-se apenas de uma esperança potencial, que não é garantida nem, em última análise, exprimível.
Entendido de forma ampla, o livro de Mundik encontra em McCarthy um desenvolvimento original de uma tradição filosófica que se estende de Platão a Aldous Huxley. Embora seja certamente a mais desenvolvida do seu gênero, esta abordagem de ler McCarthy como o representante do legado desta ou daquela tradição filosófica não é exclusiva de Mundik. Por exemplo, a coleção de Eagle contém uma série de ensaios que desenvolvem leituras semelhantes, embora menos exaustivas. No primeiro capítulo do volume, Julius Greve argumenta que os romances sulistas de McCarthy estão comprometidos com uma concepção de matéria que se origina na “ideia [platônica] de matéria no Timeu” e é desenvolvida tanto na “tradição idealista alemã da Naturphilosophie” quanto no realismo especulativo[8] de pensadores como Grant[9] e Negarestani[10] (Greve, p. 7). Trabalhando nas primeiras novelas, Greve revela que o trabalho de McCarthy está “repleto de uma metafísica da natureza segundo a qual a materialidade excede sua corporificação e seu envolvimento ideacional em igual medida” (Greve, p. 26). Através desta concepção da matéria, passamos a ver a ficção de McCarthy como “não apenas uma forma de contemplação sobre a natureza, mas uma atividade dela” (Greve, loc. cit.). Para Greve, assim como para Mundik, a obra de McCarthy desenvolve uma posição metafísica a partir da qual se seguem as suas afirmações relativas à natureza humana, à sociedade e à ética.
Similarmente, Ian Alexander Moore vê na apresentação do Juiz uma metafísica “inquietante” e “um ethos para viver de acordo com ela”, “melhor compreendido em termos do antigo filósofo grego Heráclito” (Moore, p. 93). Para Moore, a metafísica de McCarthy adere à noção heraclitiana da realidade como “conflito” ou “guerra”, uma posição que ele desenvolve através da análise da compreensão da guerra pelo Juiz, bem como na insistência do romance no fogo como o elemento essencial da realidade. Tal como Mundik, Moore deseja ver nesta metafísica a possibilidade de esperança ou redenção, enquanto a metafísica de McCarthy nos desafia a desenvolver um “ethos pelo qual viver” diferente do Juiz.
Em contraste com estas análises mais esperançosas, Alberto Siani argumenta que McCarthy está “comprometido com um realismo completo”, que ele explica através do trabalho de Thomas Nagel (Siani, p.202). Para Siani, “Suttree e A estrada apresentam-nos uma imagem consistentemente desenvolvida e unificada de um mundo em que os humanos não ocupam nenhum lugar especial, onde as suas ações são apenas eventos, os seus sistemas de valores e reivindicações cognitivas apenas mentiras, e a única verdade é o nada da morte substanciando a existência” (Siani, p. 213). Para Siani, a lição da ficção de McCarthy é um realismo pós-humano destinado a revelar a indiferença fundamental do mundo para com os assuntos humanos.
Deixando de lado as potenciais tensões entre estas várias leituras, todas elas entre as mais fortes da coleção de Eagle, o que todas estas interpretações partilham é uma compreensão da filosofia de McCarthy como uma expressão original de alguma tradição filosófica previamente existente: McCarthy figurou de várias maneiras como filósofo perene, cavaleiro [eques] materialista de Schelling, metafísico heraclitiano ou realista pós-humano. Tais abordagens vão além de ver a relação do romancista com a filosofia como meramente temática, encontrando em sua obra uma posição filosófica sistemática. Para tais intérpretes, McCarthy é, em última análise, um filósofo, uma noção ainda mais claramente desenvolvida em Cormac McCarthy’s Philosophy, de Ty Hawkins.
Enquanto muitos dos estudos existentes sobre McCarthy e filosofia, como os citados acima, enquadram o autor como um representante de uma determinada escola filosófica — o que Hawkins descreve como a abordagem “McCarhty e” — Hawkins propoem uma afirmação ainda mais “radical” na qual “McCarthy é um verdadeiro filósofo” (Hawkins, p. 2-3). A radicalidade de tal alegação reside na noção de que, enquanto influenciado por várias tradições filosóficas e teológicas, ele desenvolveu a sua própria posição filosófica totalmente original, completa com metafísica, ontologia, epistemologia e ética. Para Hawkins, McCarthy não é um acólito filosófico, mas um autor da distinta filosofia McCarthiana, organizada por um conjunto de compromissos metafísicos e ontológicos com base nos quais emergem sua epistemologia e a ética.
A metafísica de McCarthy é, argumenta Hawkins, uma forma de realismo platônico, definida pela interação dialética entre universalidade e particulariade, Forma e Ser. Para Platão, algo existe apenas na medida em que seu ser ou materialidade corresponde com sua Forma: a existência de uma cadeira, por exemplo, composta pela identidade entre algum material específico e a Forma da cadeira. É esta combinação que, para Platão, constitui não apenas a existência de todas as coisas, mas também a possibilidade da verdade e da justiça. Como Hawkins escreve: “[a] Forma do Bem é a base do realismo de Platão necessária para chamar a realização de integridade de uma coisa – o alinhamento do ser e da Forma – tanto verdadeira (sua natureza) quanto justa (seu propósito correto)” (Hawkins, p. 4). Onde esta combinação for rompida, por exemplo se a cadeira for destruída, então não somente a cadeira deixa de exisitir, mas também a sua possibilidade de verdade (natureza) e justiça (propósito correto), pois uma pilha de madeira é incapaz de ser verdadeiramente chamada de cadeira ou para seguir o propósito correto de uma cadeira. Seria este rompimento da combinação entre Forma e Ser que em muitas maneiras define a provocação existencial da filosofia McCarthiana: o autor comprometido com uma formulação platônica da existência, verdade e justiça, enquanto simultaneamente nega a possibilidade de verdade e justiça universal.
Para Hawkins, é esta demanda simultânea e a rejeição da universalidade que prova a convicção mais importante e paradoxal da filosofia do romancista: “as causas basilares da mais estranha, e ainda mais atraente, ramificação da filosofia de McCarthy: a sua simultânea demanda e negação da justiça” (Hawkins, p. 4). No centro da metafísica de McCarthy está a tensão “dialética” entre o desejo e a negação da universalidade entendida como verdade (natureza) e justiça (propósito correto). Para McCarthy, o problema da existência, e particularmente da existência humana, está em nossa inabilidade de conhecer a sua verdade e, por extensão, o seu propósito, sendo este impasse um resultado do rompimento na concordância entre Ser e Forma. Para resolver esta tensão, Hawkins faz uma leitura da figura do “homem da fronteira” na obra do escritor. Nós vemos nesta figura a personificação da luta de McCarthy com o que Hawkins chama de “referente ausente” de verdade e justiça, a inclusão paradoxal do homem da fronteira e a sua exclusão da ordem social fornecendo um teste de como podemos viver em resposta à necessidade e negação simultânea de significado e propósito. A chave, para Hawkins, é o foco de McCarthy em Vontade em vez de justiça, a questão de um propósito certo ou errado para a existência humana transmutado em uma questão de se os homens podem, por meio de um ato de vontade, dar a si mesmo um propósito, e o que isto pode implicar.
Hawkins argumenta que McCarthy rejeita tanto a abordagem “pragmática” quanto a “utópica” da vontade. Para Hawkins, o compromisso de McCarthy com o realismo coloca-o em conflito com a visão do pragmatismo da verdade como construída socialmente, bem como contesta a confiança do pragmatismo no potencial progressista da ciência. Como Hawkins resume, para o autor, “o método pragmático naturaliza o consequencialismo na forma de um método científico revisado. Em seguida, ele confunde esse método com o progresso de forma circular, sempre se dobrando sobre si mesmo, na medida em que cada pouso fracassado é mais um voo, e vice-versa” (Hawkins, p. 62). Afirmar a capacidade humana de construir o mundo como bem entendem é simultaneamente sobrestimar o poder da humanidade sobre o mundo e, mais seriamente, postular uma espécie de idealismo que ignora a verdadeira indiferença do mundo relativamente às vontades e desejos humanos. Similarmente, a crítica de McCarthy ao utopismo reside na afirmação de que as ideias utópicas são, como os ideólogos reacionários que as contestam, fundamentadas em um universalismo falso.
Contrastando a explicação sobre McCarthy com as de Frederic Jameson[11] e Slavoj Žižek, Hawkins argumenta que o problema do autor com a política utopista é duplo. Primeiro, estes políticos falham em ver o seu próprio envolvimento na violência ideológica que eles procuram contestar, a “ordem utópica [...] tanto [quanto] a estrutura maquiavélica da organização social prática escondida atrás de um [...] universalismo falso” tal como os sistemas capitalista e autoritários que eles contestam (89). Em segundo lugar, a política utópica postula uma evacuação perturbadora da individualidade para ideais coletivos ideológicos. Em resposta a estas falhas, Hawkins argumenta que McCarthy postula uma crítica à modernidade no estilo de [Hannah] Ardent, que se afasta das alternativas capitalista e marxista em favor de um individualismo radical. É com base nesse individualismo que McCarthy constrói a sua resposta definitiva para o dilema da existência humana.
Tendo trabalhado através da crítica de McCarthy aos políticos utopistas e pragmáticos, o capítulo final de Hawkins torna a sua atenção para a “solução” do romancista ao impassae entre Forma e matéria. Ao usar a noção de “subtração” de Alain Badiou, Hawkins demonstra que McCarthy desenvolve uma noção de Vontade, figurada como “ardência interna”, que “subordina a intelecção ao ato narrativo” (108-109). Engajar em um ato de narração obstinada é “acreditar [...] na possibilidade de graça e, ao fazer isso, [...] retomar [a sua] agência, mesmo enquanto arrisca a própria existência” (109). Ele demonstra como a noção de ardência interna se desenvolve ao longo dos romances nos Apalaches, no que ficaria conhecida como a “Trilogia da Fronteira”, e finalmente concluída no pai de A estrada. Para Hawkins, o pai da narrativa apocalíptica é uma figura de “graça” que, diante da total falta de qualquer ideal coletivo, mesmo assim declara um sentido de significado por meio de sua busca para garantir a segurança de seu filho. Ao fazê-lo, o pai é bem-sucedido, mas apenas com a perda da sua própria existência. Como conclui Hawkins, “[o] pai morre necessariamente sem saber se a criança estará segura depois que ele partir. No entanto, A estrada ‘carrega o fogo’ ela mesma, imaginando um futuro para o menino, na forma de sua nova família e um legado para o Papa, com quem a criança promete que ‘conversará todos os dias’ (TR 286). Ao fazer isso, A estrada imagina a graça, Will intercedendo em nome da vontade de Papa; por sua vez, A estrada completa um sistema filosófico macarthiano” (132).
Para Hawkins, a realização da filosofia McCarthiana é uma espécie de aposta existencial kantiana, o pai agindo “como se” o seu filho tivesse um futuro contra todas as evidências do contrário e, ao fazê-lo, garantindo ao seu filho o mais improvável dos futuros. É, insiste Hawkins, esta possibilidade muito improvável, não muito diferente do conceito de mistério de Mundik, sendo a lição final da filosofia de McCarthy: o autor mostrando-nos não apenas o absurdo da existência, mas uma maneira de viver com esse absurdo. Para Hawkins, tal como para Mundik e Eagle, a filosofia de McCarthy tenta compreender a natureza precária e instável da existência humana, recusando-se, no entanto, a cair no niilismo; o cerne de sua filosofia é a sua insistência na possibilidade de esperança, redenção e potencial humano. No entanto, embora insistam na noção de McCarthy como filósofo e cheguem a conclusões semelhantes, estes trabalhos traçam abordagens muito diferentes à questão da relação do romancista com a filosofia.
Conforme descrito acima, os livros recentes sobre McCarthy e a filosofia vão além de uma abordagem temática, lendo McCarthy como um filósofo e não como um romancista com inclinações filosóficas. Há, na obra de McCarthy, muito mais do que temas e tropos filosóficos, o seu corpus desenvolve um sistema filosófico sistemático. Deixando de lado por enquanto a questão de qual a melhor forma de ler o carácter do seu sistema filosófico, é a noção de McCarthy como filósofo que é, para nós, o elemento mais excitante e provocador destas obras recentes. No entanto, embora importante, a questão de McCarthy como filósofo é, na nossa opinião, dificultada pela abordagem adotada por estes livros recentes. Mais especificamente, cada um destes estudos explica a filosofia de McCarthy através da sua relação com algum pensador ou sistema filosófico preexistente. McCarthy é, nestas abordagens, ou o proponente de uma escola existente de pensamento filosófico – um Filósofo Perene, por exemplo – ou ele apresenta reivindicações filosóficas semelhantes a este ou aquele filósofo, adotando, por exemplo, uma noção platônica de verdade ou uma crítica arendtiana de modernidade. Embora estas comparações tenham mérito, iluminando elementos-chave do pensamento do autor, elas tendem a citar passagens e citações que apoiam a sua posição, ignorando ou minimizando aquelas que não o fazem. Vemos isso, por exemplo, no reconhecimento de Mundik de que seu estudo deixa de lado “os temas sociopolíticos e históricos que cercam a região sudoeste” e, ao fazê-lo, evita a questão de como esses temas, dominantes em grande parte da literatura sobre a região ocidental de McCarthy, romances, pode constituir um componente-chave da sua filosofia (5). Se é verdade que McCarthy tem o seu próprio sistema filosófico distinto, então detalhar esse sistema requer que se leve em conta todos os seus componentes, seguindo o desenvolvimento interno da sua filosofia nos seus próprios termos. É a necessidade de tal seguimento que anima o apelo de Hawkins para abandonar o tipo de abordagem “McCarthy e” de estudiosos como Mundik.
Mais do que qualquer outro estudo, Hawkins categoriza explicitamente McCarthy como um filósofo, como “promotor de uma filosofia sistêmica” própria. No entanto, tal como Mundik e muitos dos ensaios da colecção de Eagle, Hawkins detalha esta filosofia inteiramente através do que ele caracteriza como um conjunto “torturante” de outros filósofos e do seu trabalho (3). Embora ele justifique esta escolha metodológica como necessária, uma vez que “é necessária uma boa dose de assistência filosófica para traduzir a filosofia de McCarthy da narrativa para o argumento acadêmico”, o resultado final é uma filosofia McCarthiana que parece menos uma posição própria e mais um amálgama de vários, talvez até ideias filosóficas incompatíveis. Na perspectiva de Hawkins, a filosofia de McCarthy é um individualismo platónico, arendtiano, anti-pragmático, anti-jamesoniano, anti-Žižekiano, badiouiano, no qual, como bons kantianos, devemos, em última análise, agir como se houvesse esperança e possibilidade, mesmo que não existam. O que é revelador nesta formulação é a forma como, apesar do seu desejo declarado de nos dar a filosofia de McCarthy, o que Hawkins oferece é a sua própria versão da abordagem “McCarthy e”, evitando uma leitura atenta dos textos de McCarthy em favor de analogias emblemáticas com várias ideias e posições filosóficas. Não é que não se possa proceder desta forma nem que não haja valor em fazê-lo, mas levanta a questão de porque não podemos detalhar a filosofia de McCarthy simplesmente seguindo os temas dos próprios romances do autor.
Se a questão que está na vanguarda de McCarthy-e-filosofia é como detalhar a posição filosófica distinta e original de McCarthy, então a tarefa que ainda temos pela frente é demarcar e identificar os contornos, objetivos e carácter de sua filosofia em seus próprios termos. Dada a especificidade da linguagem de McCarthy – do que Eagle chama de seu “estilo expressivo” – tal projeto exigiria que seguíssemos a explicação de McCarthy sobre materialidade, verdade, ética, etc. aparecem na própria obra do autor. Se, como os estudiosos agora concordam, McCarthy é um dos escritores mais filosóficos e um dos filósofos literários mais filosóficos da literatura americana, é altura de unirmos completamente estas duas identidades, desenvolvendo, sem mediação, o carácter distintivo e original da filosofia macarthiana. O envolvimento num projeto deste tipo promete desenvolver, de formas emocionantes, o trabalho de Mundik, Hawkins e Eagle, sendo o seu trabalho uma contribuição à qual qualquer pensamento futuro sobre a filosofia de McCarthy estará inegavelmente em dívida.
Três maneiras de olhar para um cavalo: Literatura e Mídia / O Meio da Literatura
Revisão de:
Justin St. Clair, Sound and Aural Media in Postmodern Literature: Novel Listening
(Routledge, 2013):
Simon Barton, Visual Devices in Contemporary Prose Fiction: Gaps, Gestures, Images (Palgrave Macmillan, 2016), 202pp
Jørgen Bruhn, The Intermediality of Narrative Literature: (Palgrave Macmillan, 2016), 202pp
Guido Isekenmeier
University of Stuttgart, Germany guido.isekenmeier@ilw.uni-stuttgart.de
Dado que todos os três livros aqui analisados trabalham sobre a relação da literatura com vários meios de comunicação e todos entendem que “literatura” significa narrativa/ficção em prosa (anglo-)americana pós-Segunda Guerra Mundial, é surpreendente quão pouco eles têm em comum. Isto se deve em parte ao fato de abordarem diferentes meios de comunicação e de conseguirem elaborar corpora de textos primários que não se sobrepõem a um único autor, muito menos a um texto individual.
[1] EAGLE, Chris (edit.) (Routledge, 2017): 230pp
[2] MUNDIK, Petra. (University of New Mexico Press, 2016): 432pp
[3] HAWKINS, Ty (Palgrave, 2017): vii+145pp
[4] Nota do Tradutor: Rick Elmore é professor associado de filosofia na Universidade Estadual Appalachian. Ele pesquisa e ensina filosofia francesa do século XX, teoria crítica, ética, filosofia política social, filosofia ambiental, novos realismos e estudos de Cormac McCarthy. Contato: <elmorerl@appstate.edu>
[5] Nota do Tradutor: Jonathan Elmore é professor associado de Inglês, Linguagens e Cultura na Universidade Estadual de Savannah. Contato; <elmorej@savannahstate.edu>
[6] Nota do Tradutor: Naturphilosophie (alemão para “filosofia da natureza”) é um termo usado na filosofia de língua inglesa para identificar uma corrente na tradição filosófica do idealismo alemão, aplicada ao estudo da natureza no início do século XIX. Os falantes de alemão usam o termo mais claro Romantische Naturphilosophie, a filosofia da natureza desenvolvida na época da fundação do Romantismo alemão. Está particularmente associado ao trabalho filosófico de Friedrich Wilhelm Joseph Schelling e Georg Wilhelm Friedrich Hegel.
[7] Nota do Tradutor: As Montanhas Apalaches, muitas vezes chamadas de Apalaches, são uma cordilheira do leste ao nordeste da América do Norte.
[8] Nota do Tradutor: O realismo especulativo é um movimento na filosofia contemporânea de inspiração continental (também conhecida como filosofia pós-continental) que se define vagamente em sua postura de realismo metafísico contra sua interpretação das formas dominantes da filosofia pós-kantiana. Embora muitas vezes discordem sobre questões filosóficas básicas, os pensadores realistas especulativos partilham uma resistência ao que interpretam como filosofias da finitude humana inspiradas na tradição de Immanuel Kant. O que une os quatro membros centrais do movimento é uma tentativa de superar tanto o “correlacionismo” como as “filosofias de acesso”. Filosofias de acesso são qualquer uma daquelas filosofias que privilegiam o ser humano sobre outras entidades. Para os realistas especulativos, ambas as ideias representam formas de antropocentrismo.
[9] Nota do Tradutor: Ian Hamilton Grant (1963) é um filósofo britânico e professor da Universidade de West England.
[10] Nota do Tradutor: Reza Negarastami (1977) é um filósofo e escritor iraniano.
[11] Nota do Tradutor: Frederic Jameson (1934) é um crítico literário, filósofo e teórico político marxista. Ele é mais conhecido por sua análise das tendências da cultura contemporânea, particularmente das tendências da pós-modernidade e do capitalismo.
FONTE: Elmore, R., Elmore, J., Isekenmeier, G. & Lindquist, A., (2021) “Review Essays on Recent Scholarship: Elmore Bros. on McCarthy-as-Philosopher; Isekenmeier on Contemporary Literary Mediality; Lindquist on Postnationalism in Postmodernism”, Orbit: A Journal of American Literature 9(1).
Veja o original aqui
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